
A Gênese Freudiana da Culpa
Por Denise Maia
Freud se refere a culpa como um dos mecanismos de defesa dentro do conceito de neuropsicoses (1894). Num caso clínico estudado foi constatado que a culpa pelo excesso de masturbação gerou autoacusações de crimes reais aos quais a paciente não cometera. A culpa dava-se pelo sentimento do ato ser desvio comportamento gerando vergonha a que a fazia se sentir culpada e, portanto buscava uma vivência para reconhecer-se como culpada. No trabalho “Atos Obsessivos e Práticas Religiosas” (1907), expõe que a repetição de rituais bem como nas neuroses obsessivas, encontra-se um sentimento inconsciente de culpa que seria revivida na repetição e para proteger da ansiedade. A autorrecriminação e autodepreciações, também típicas da melancolia (1917), tem destaque no estudo sobre o masoquismo pois está ligado ao sofrimento ou humilhação (1924). O sentimento inconsciente da culpa se compõe como um masoquismo moral pois o sujeito se põe em posição de vítima sem diretamente qualquer prazer sexual vinculado.
Nos estudos (1923) em “O Ego e o Id”, vê-se o Superego surgindo do sentimento de culpa, como a um herdeiro do Complexo de Édipo, o que lhe dá um cunho eminentemente social. Por isso o sentimento de culpa faz parte da articulação de vida do sujeito com o convívio social e cultural.
O fato do ser humano depender desde o nascimento do convívio social/familiar, de cuidados para sobreviver já traz em si um conflito entre suas exigências individuais e as sociais onde surge o embate dos desejos individuais por vezes contrários ao bom convívio sócias/cultural. Na sua teoria em “Totem e Tabu” (1912-1913) fundamenta que a culpa é resultado do assassinato do pai primitivo e consequentemente nos dois tabus sendo a submissão à autoridade do pai e a proibição do incesto. Desse modo a cultura provoca a internalização da repressão necessária para dominar as pulsões sexuais quanto à satisfação egóica individual. Havendo um dualismo pulsional no qual há o conflito entre a pulsão sexual e a autoconservação do ego. Havendo um dualismo pulsional no qual há o conflito entre a pulsão sexual e a autoconservação do ego. Para ele, as pulsões eróticas, além de força vital, poderiam também se constituir como força disruptiva. No entanto, a partir da repressão, essa força pode se converter de antissocial para uma força pró-social.
Com a publicação de “Para Além do Princípio de Prazer” (1920), Freud reformula a teoria pulsional e apresenta a teoria da pulsão de morte O conflito psíquico da culpa agora é visto como um conflito entre as pulsões Eros – da satisfação e a morte. A destrutividade humana é vista como de sua natureza justificando o inevitável sentimento de culpa em toda a organização sócias (1930).
É preciso esclarecer sobre o termo tabu culturalmente. O termo é entendido como a tudo que seja perigoso, misterioso, proibido, impuro, não deve ser tocado mas também é sagrado ao homem. Devendo ser mantido à distância mas lembrado e temido. Freud considera que são projeções dos próprios impulsos emocionais dos homens que constituíam o perigo a ordem social. Cultura ou civilização é tudo que diferencia o humano da condição animal; conhecimento, capacidades de controle da natureza na produção de riquezas e sua distribuição, o próprio homem como uso de trabalho ou mesmo como escolha de objeto sexual. Necessário se fez a criação de leis reguladoras para esse convívio em detrimento da liberdade individual - em “O Futuro de uma Ilusão” (1927).
A tese de Freud é a de que os crimes proibidos por lei seriam os que os homens teriam uma propensão natural a cometer. Canibalismo, o incesto, e a ânsia de matar seriam desejos fundamentalmente humanos, que ainda nascem com cada criança e seriam ainda operantes, se não os repudiássemos conscientemente. Mas que essas proibições são incompatíveis a pulsões humanas as quais devem ser coibidas individualmente a favor da sociedade. Assim a sociedade se sustenta na renúncia à pulsão. A impossibilidade em manter-se uma cultura livre da coerção pulsional se dá devido ao homem carregar como fator psicológico, tendências destrutivas antissociais (1927). Portanto as medidas coercitivas são necessárias bem como recompensas aos sacrifícios de ter de abrir mão da satisfação. O que Freud chamará de “vantagens mentais da civilização”. Destacam-se como medidas coercitivas a proibição, a frustração, e a consequente privação, as quais atuam contra os desejos pulsionais agressivos e antissociais a fim de que haja a renúncia a eles. Tais renúncias provocam um “desenvolvimento ou progresso mental” que é a internalização gradativa da coerção externa formando o superego.
Este processo de transformação torna o sujeito, desde a infância, um ser moral e social. Quanto mais sujeitos a internalizarem no superego mais segura será a sociedade como consequência menos coerção externa será empregada (1927). O superego aplica as exigências mais rígidas da moralidade ao ego indefeso que a ele pode sucumbir.
É certo que há pessoas que só obedecem a certas proibições sob coerção externa mesmo que haja a internalização dos valores culturais/sociais o que não impede as práticas de mentiras, fraudes, calúnias, impulsos agressivos ou sexuais porque não encontram razões que lhes parecem vantajosas apesar de uma punição.
“O desenvolvimento do superego — ou o desenvolvimento moral do ser humano - constitui, para Freud, o valor ou riqueza mental de uma civilização”.
As crianças não possuem tais restrições aos seus impulsos e, portanto não obedecem as regras morais externos a elas. A primeira restrição virá pela autoridade externa – os pais. Os cuidados serão interpretados como amor e as proibições as levarão ao medo ou O ego frágil infantil admite nos pais sua natureza moralmente elevada o que a leva a admiração mesmo que temida e, assim há necessidade de obediência.
A criança passa pelo processo de identificação pela percepção de semelhança entre dois egos e passa a imitar atos de seus pais, gradualmente vai internalizando e formatando o seu superego – o herdeiro do complexo de Édipo - fruto da identificação com as figuras parentais. “Tal como a criança esteve um dia sob a compulsão de obedecer aos pais, assim o ego se submete ao imperativo categórico do seu superego” (1923). Herdeiro no sentido de que assim como os pais, o superego exerce a função de auto-observação, julgamento, censura, modelo ideal, assumindo o poder e os métodos parentais. Mais tarde vai assimilando novas influências externas todos que possam influenciar na sua vivência; há um afastamento dos modelos parentais dando lugar a valores mais elevados culturalmente bem como religiosos, morais e de senso social como instâncias superiores.
O superego o representante de todas as restrições morais, o advogado de um esforço tendente à perfeição — é, em resumo, tudo o que internalizamos psicologicamente do que é considerado como aspecto mais elevado da vida do homem (1933). É o processo que se constitui como forma de proteção do temor da castração o que leva a criança ao período de latência. Daí a vinculação entre a dissolução do complexo de édipo e a gênese do superego.
O superego então é formado pela dessexualização das tendências libidinais incestuosas da criança direcionadas ao pais e sublimadas pela identificação e introjeção da autoridade dos pais. Este processo se dá pelo temor da castração, assim a criança passa ao período de latência, pela dissolução do complexo de Édipo e o surgimento do superego.
Na identificação parental implica a existência de afetos ambivalentes de amor e hostilidade, havendo o desejo da aniquilação dos pais, surgindo o conflito devido aos afetos agressivos e hostis serem direcionados a tais objetos, sujeitos à repressão superegóica que se volta contra o ego assumindo o caráter implacável do superego. O superego na tentativa de reprimir tais instintos agressivos, castiga o sujeito gerando o profundo sentimento de culpa, mesmo assim, é incapaz de extinguir a ambivalência afetiva que se abriga no inconsciente, e que tentará sempre voltar ao presente. A presença de afetos ambivalentes se mantém ativa no psiquismo mesmo que inconsciente.
Pelo fato de que toda organização social exigir que se abra mão da felicidade individual em prol do coletivo há a inevitável sensação de mal-estar por nunca se conseguir alcança-la. A dependência do outro, desde o nascimento, nos faz abdicar da felicidade individual.
A satisfação pulsional, base do princípio do prazer, uma vez impedida pelo mundo externo, passamos a controlar nossos instintos através do superego como defesa para evitar tal sofrimento. A função da civilização é proteger os homens contra sua própria natureza, ajustando os relacionamentos sociais evitando o caos. O grupo é mais forte do que o individual, o direito prevalece em lugar da força bruta. A lei e a justiça não serão violadas em prol do individual; o desenvolvimento da civilização se dá pela renúncia a pulsões de instintos agressivos antissociais e destrutivos – “homo homini lupus” (1930).
A agressividade se constitui como uma forte disposição pulsional o que seria impedimento e um risco à civilização, e é a responsável pela perturbação nas relações interpessoais. Portanto a que se pôr limites para as pulsões agressivas através de formações psíquicas reativas. Valores como amizade, amor, etc vão contra a natureza humana, o domar dos desejos seria a solução para adaptar-se ao princípio da realidade o que implica numa diminuição no potencial de satisfação. A sublimação dos instintos agressivos através da arte é uma das soluções. O isolamento eremita ao rejeitar a realidade do mundo e do convívio social, como se isso fosse a causa do todo sofrimento, culminando num isolamento como garantia de felicidade põe em risco sua sanidade e não lhe garante a harmonia. A neurose se funda na frustação pulsional. A civilização também impõe restrições, não só à sexualidade, mas também à agressividade do homem.
O desafio é saber lidar com as pulsões hostis numa comunidade global. Freud recorre à história do indivíduo para entender os mecanismos que tornam inofensivos os desejos de agressão.
Quando o indivíduo introjeta sua agressividade impossibilitando de lançá-la ao mundo exterior, esta retorna para si, ao próprio ego, assumida pela instância superegóica. Essa agressividade é descarregada em si mesmo. A tensão entre o superego e o ego é a causa do sentimento de culpa, que requer a punição sobre si pelo agente interno por ter feito ou ter tido a intenção de um ato “mal”, referido a valores externos. Surge o medo da perda de amor dos que cuidam de nós, nos fazendo sentir ameaçados.
Se a autoridade externa não sabe sobre a “má” intenção ou mesmo o ato, não há ainda o sentimento de culpa, que surgirá somente após a internalização de uma autoridade através do superego. A distinção entre ato e intenção passa a não existir porque nada pode ser oculto do superego, que atormenta o ego com intensa ansiedade e buscará uma punição no mundo externo. O sentimento de culpa é na verdade anterior ao ato se praticado ou não, pois ele já existia no inconsciente. Vale dizer que a resistência a melhora de doenças em certos pacientes se deva a um sentimento inconsciente de culpa, como satisfação na doença, que seria a sua punição no sofrimento.
“Assim, temos duas origens para o sentimento de culpa: em primeiro lugar, o medo da autoridade; posteriormente, o medo do superego. A primeira implica na renúncia à satisfação instintiva. A segunda exige a renúncia e a punição, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do superego”.
Através da identificação, a criança incorpora a autoridade externa, de início de seus pais, sob a forma de superego, e toda a agressividade que não pôde ser direcionada aos objetos externos, inclusive aos pais e daí dá-se a ambivalência afetiva amor/ódio, que retorna a si mesmo, atacando agora o ego. Agora a situação é invertida, e a severidade do superego tem sua gênese na agressividade original/inicial do ego e não na severidade da autoridade externa. O que Freud chama de “fatal inevitabilidade do sentimento de culpa”.
Se os filhos matam ou não o pai, haverá sempre a ambivalência e o sentimento de culpa como expressão deste conflito, da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou morte.
A sociedade se organiza através de famílias e o conflito irá aparecer no complexo edipiano com a formação da consciência moral, ou superego, e se instalará o sentimento de culpa. O que começou em função do pai, se expande ao grupo, que continuamente através das coerções sociais, fortalece o sentimento de culpa. Se paga o preço pelo avanço da civilidade com a perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa” (1930).
Bibliografia:
1 – artigo Puc-Rio 0710419/CA.
2 – Unesp – Marilia – A gênese da repressão em Freud: Diagnóstico e tendência oculta da psicanálise.
3 – artigo: O sentimento de culpa na psicanálise – Wagner da Matta Pereira.
4 – O sentimento de culpa na obra de S. Freud -
blibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/abp/article/viewFile/18938/17680
5 – artigo: Culpa ou preocupação? - EVA NICK. Revista Vórtice da Psicanálise