
Associação livre de ideias: via régia para o inconsciente – a especificidade do método
por Marta Foster
Introdução
Encontro analítico = tempestade emocional
No Dicionário Comentado do Alemão, o autor Luiz Hanns (1996) faz um esclarecimento sobre o termo associação de ideias. Traz no título: Ideia, associação livre, associação: einfall. Comenta que Freud emprega o termo einfall no contexto do fluxo de ideias que vão ocorrendo e sendo comunicadas pelo paciente na sessão. Diz ele:
De modo geral, pode-se dizer que uma ideia/representação (vorstellung) recalcada, ao estabelecer vínculos associativos com outras representações menos ameaçadoras, situadas em pontos mais afastados da cadeia associativa, permitirá ao conteúdo recalcado aflorar à consciência, sob uma forma distorcida, sem o perigo de ser reconhecido. (1996, p. 101)
Entendo que a pré-emoção (Bion, 1962) e a emoção presentes no encontro analítico são responsáveis pelos traços mnêmicos transmitidos pela comunicação verbal, pré-verbal e não verbal que "escuto" como associativas à experiência emocional vivida em sala de análise. O indivíduo não é um "polipeiro de imagens", assim como o discurso associativo não é regido por leis gerais como o associacionismo definiu. Como nos esclarecem Laplanche e Pontalis (1986), "o agrupamento das associações, o seu isolamento eventual, as suas ‘falsas conexões’, a sua possibilidade de acesso à consciência, inscrevem-se na dinâmica do conflito defensivo de cada um."
O conteúdo manifesto que representa a comunicação do paciente, seja verbal, seja pré-verbal ou não verbal, é o substituto deformado para os pensamentos inconscientes e essa deformação é obra das forças defensivas do ego (Freud, 1910/1972).
Entendo o momento do encontro analítico como muito especial na relação. … Observo que é como se as funções do ego ficassem debilitadas, penso que pelo impacto do encontro. A resistência perde um pouco do seu poder, tornando a comunicação do paciente tanto verbal quanto pré-verbal (acrescento hoje: não verbal) mais delatável. (Foster, 2005, p. 373)
Apresentarei minha proposta, organizando, nas próximas páginas, as referências teóricas com as quais me identifico. Considerei e pesquisei, como menciono no resumo acima, especificamente, os conceitos de "experiência emocional" e "linguagem", abordando a comunicação verbal, pré-verbal e não verbal.
Experiência emocional
É fato que a experiência emocional existe sempre e age sem que delas tenhamos consciência uma boa parte das vezes. A questão é de que forma poderemos apreendê-las e de que forma poderemos formulá-las verbalmente. (Sandler, 2003.) Nenhuma emoção existe independente de estímulos externos, somos seres pulsionais e a pulsão é buscadora de gratificação. Somos, portanto, seres desejantes, no entanto, sabemos que a catexia, uma vez dirigida aos objetos, deles se recolhem em situações de frustração (Freud, 1914/1972). É na obra de Bion que vemos citado o conceito de "experiência emocional", e podemos observar suas ideias a respeito, sintetizadas na sua famosa frase "uma experiência emocional não pode ser concebida apartada de uma relação" (Bion, 1962). Esse autor várias vezes nos traz, no decorrer da sua obra, o conceito de que objetos animados ou inanimados "estão em relacionamento, uns com os outros" (Bion, 1962).
Na introdução, citei o momento do encontro analítico como sendo de grande importância no trabalho clínico, sendo que a experiência emocional já esta ocorrendo no momento desse encontro. No seu livro, Experiências em grupos, Bion (1948) vai postular a existência de fenômenos protomentais, para tentar explicar por que as emoções associadas a um suposto básico,3 que podemos traduzir como as defesas presentes no encontro analítico, em determinados momentos estão ligadas entre si com tenacidade e exclusividade. Acrescenta, também, que o estado emocional precede o suposto básico e segue certos fenômenos protomentais. (Bion, 1948)
Minha proposta, em função "dos ganhos" observados na experiência clínica, é que a escuta do analista possa vir a estar "catexizada"4 (Freud, 1900/1972e) para esse fenômeno. Não deixo de levar em consideração, quando menciono uma escuta "catexizada", os conceitos de "atenção flutuante" (Freud) e "sem memórias e sem desejos" (Bion), isso quer dizer que não estou postulando o que é mais ou menos importante em sala de análise. Apenas quero alertar para o fato de que nós também estamos mobilizados pelo encontro com o outro, em suma, a "tempestade emocional" é via de mão dupla, e em função de nossas próprias defesas, devido ao aumento da tensão que ocorre nesse momento, nossa escuta pode ficar mais vulnerável, e deixarmos de levar em consideração esses fenômenos, que estão tão bem descritos nas orientações de Freud.
Trago uma contribuição de Bion que organiza o que acima estou propondo com o termo "escuta catexizada":
Uma criança que tem a experiência emocional chamada "aprender a caminhar", é capaz, graças à função alfa, de acumular esta experiência. Pensamentos que a princípio tiveram que ser conscientes se transformam em inconscientes e deste modo a criança pode realizar todo o pensar necessário para caminhar sem ser consciente deste fato. A função alfa é necessária para realizar todo o raciocínio consciente e para delegar o pensar ao inconsciente quando é necessário liberar a consciência do montante de pensamento devido ao aprendizado de uma habilidade. (Bion, 1962, p. 35)
Acredito que, dentro desse referencial, teremos mais condições de poder "sonhar" essa experiência. Os elementos alfa surgirão das impressões obtidas a partir de determinada experiência e, portanto, tornam-se disponíveis e acumuláveis para o pensamento (Bion, 1962).
Não podemos deixar de mencionar, aqui, a complementação do pensamento de Bion (1962) com relação à importância da função alfa, à medida que está a cargo dessa função a condição de transformar uma experiência emocional em elementos alfa. Esse sentido de realidade que daí surge torna-se fundamental para a qualidade de vida. Usando as suas palavras "Porque um sentido da realidade importa ao individuo do mesmo modo em que importa a comida, a bebida, o ar e a eliminação de resíduos." E nos alerta: "O fracasso no comer, no beber e no respirar corretamente tem consequências desastrosas para a própria vida". Somos testemunhas de que o fracasso na percepção e no uso da experiência emocional produz deteriorações psíquicas que impedem o desenvolvimento da personalidade, provocando verdadeiros desastres: "Incluo entre esses desastres, diferentes graus de deterioração psíquica que podem ser descritos como morte da personalidade" (Bion, 1962)
Afeto e linguagem: Comunicação não verbal, pré-verbal e verbal
A psicanálise é um modo particular de falar da angústia, do esquecimento,
da lembrança, do tempo, da tortura.
Com a criação da psicanálise, os gritos e os movimentos da carne
podem ser ouvidos, verbalizados e eles se tornam linguagem.
Só a palavra é muito mais interessante do que procurar no
inconsciente adormecido (ref. A técnica da hipnose)5
Em livro que aborda o "afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud", Schneider (1993) mostra-nos que para Freud o modelo inicial seria "do sintoma à representação". Fala do efeito libertador da fala e da redescoberta das representações, que foi a primeira experiência citada por Freud com Anna O.
O estudo de Widlöcher, citado por Schneider (1993, p. 11), propõe que esse caminho apresentaria o perigo de minimizar todas as operações que se intercalam entre o sintoma fixado e a recolocação no circuito da representação esquecida. Estaríamos, então, diante da pergunta: Como compreender a ligação entre essa passagem pelo afeto e a redescoberta da representação que a doença teria tornado indisponível? Se pensarmos em termos de "quantum de afeto" como algo que tornaria patogênica uma lembrança esquecida, pensaríamos, dessa maneira, na luta entre duas tendências: o afundar-se mórbido no excesso de afeto e o distanciamento pelo meio da fala.
Sabemos que o afeto se caracteriza, principalmente, por um aumento de excitação. O afeto é, antes de tudo, essa "perturbação a ser reduzida", para que o aparelho psíquico reencontre um equilíbrio satisfatório. Podemos dizer que onde estava o afeto deve advir a representação para os processos psíquicos pararem de ser entravados. (Schneider, 1993). Nós nos deparamos com a questão a respeito de qual seria o itinerário emprestado para se atingir esse objetivo. Freud afirma que a linguagem desempenha um papel decisivo. Porém, diz ele:
o ser humano acha na linguagem o equivalente ao ato, equivalente graças ao qual o afeto pode ser ab-reagido quase que da mesma forma. Em outros casos, são as próprias palavras que constituem o reflexo adequado, por exemplo, as queixas, a revelação de um segredo que pesa (confissão). (Freud, 1893/1972d, p. 18)
Em estudos da filosofia analítica de Austin, encontramos:
além de uma função declarativa, a linguagem não é somente, conforme a fórmula freudiana, "o equivalente do ato", mas o próprio ato. … Não o simples reflexo articulado de coisas ou atos situados no exterior de si, mas o local de uma ação, real ou substitutiva. A linguagem não somente diz as coisas, ela as muda. (Austin, 1976, p. 21)
Há, ainda, outra forma de terapêutica pela linguagem: a associação. Freud declara que "A lembrança, mesmo não abrangida, integra-se ao grande complexo das associações, tomando lugar ao lado de outros incidentes que podem até contradizê-la e se acha corrigida por outras representações" (Freud, 1893/1972). É essencialmente sua colocação na forma verbal que nos dificulta o estabelecimento da relação com outras representações.
Essas pesquisas sobre a linguagem seriam uma confirmação trazida à tentativa, conduzida por Freud, de ver na linguagem não o simples reflexo articulado de coisas ou/e atos situados no exterior de si, mas o local de uma ação real ou substitutiva.
Andre Green (1961) é um dos autores que tem insistido em que a presença do afeto é parte integrante do processo de libertação da dor psíquica, e indica a importância do processo associativo no trabalho analítico.
Nesse sentido, penso ser necessário ler o conselho de Freud (1893/1972) de "despertar o afeto" e não somente revelá-lo. Acredito que somente seja possível despertá-lo, quando também se está desperto para o tema. Acredito, como defendo acima, ser de grande importância no trabalho analítico estarmos "despertos" para o momento do encontro, atentos às primeiras expressões que "escapam" nesse momento. Por exemplo: O paciente atrasado 15 minutos cumprimenta-me, visivelmente aborrecido, e diz: "Este trânsito está infernal, insuportável. É muito difícil de aguentar". Corremos o risco, se não estivermos despertos para a força da emoção que se está vivendo nesse momento, de acreditarmos que o paciente se refere ao trânsito de São Paulo. A escuta dentro desse referencial proposto possibilitou-nos conversar sobre o quanto lhe é insuportável verificar que sua necessidade de estar ali comigo o faz sentir-se impotente, obstruído. Isso nos dá condição, então, de falar do seu medo frente à solidão, o medo da loucura, ampliando a rede associativa, podendo trazer os sonhos assustadores que o atormentam.
Sabemos que os acontecimentos psíquicos são determinados, como nos aponta Freud, e a curiosidade nos aguça, surgindo, então, a pergunta: O que os determinam? Entendo o texto a respeito dos processos oníricos (Freud, 1900/1972) como tentativa de Freud de responder a essa questão, postulando que os fenômenos mentais, referidos nos sonhos, são os mesmos presentes na vida de vigília. Temos, portanto, no processo associativo um importante aliado para apreensão dos fenômenos mentais. Quanto a essa questão, há uma passagem, no texto, bastante enriquecedora.
Diz Freud:
É verdade que deformamos sonhos ao tentar reproduzi-los. Mas esta própria deformação não é mais que uma parte da elaboração a que os pensamentos oníricos são regularmente submetidos em resultado da censura onírica. Nós nos encontramos menos interessados nisso, uma vez que sabemos que um processo de deformação de muito maior alcance, embora menos evidente, já desenvolveu o sonho a partir dos pensamentos oníricos ocultos. O único equívoco, cometido pelos autores precedentes, foi supor que a modificação do sonho, no decurso de sua rememoração e colocação em palavras, seja arbitrária, não possa ser solucionada e que seja, dessa maneira, calculada para nos fornecer uma representação enganadora do sonho. Eles subestimaram até que ponto os acontecimentos psíquicos são determinados. … As modificações a que os sonhos são submetidos, sob a coordenação da vida de vigília, acham-se associativamente ligadas ao material que substituem e servem para indicar-nos o caminho a esse material que, por sua vez, pode ser sucedâneo de alguma outra coisa. (Freud, 1900/1972e, p. 548)
Se fizéssemos a articulação entre afeto expresso e linguagem, em termos de convergência e não mais de disjunção, teríamos dois planos estruturalmente diferentes, mas tornando um outro possível: um movimento de manifestação ou de comunicação. Green (1961) comenta, assim, o papel que Freud faz a linguagem desempenhar, "A verbalização não é aqui uma operação intelectual. … A linguagem não permite à carga somente desbloquear-se e ser vivida, ela própria é ato e descarga pelas palavras. O procedimento utilizado permite ao afeto conduzir-se verbalmente". (Green, 1961, p. 28)
Jakobson (1963), referindo-se à potência da linguagem sobre o plano ideativo, que seria o de transmitir informações, nomeia-a de função expressiva ou emotiva:
a função emotiva, patente nas interjeições, colore em algum grau todos os nossos propósitos, nos níveis fônico, gramatical e lexical. Se se analisa a linguagem do ponto de vista da informação que veicula, não se tem o direito de restringir a noção de informação ao aspecto cognitivo da linguagem. Um sujeito, utilizando os elementos expressivos para indicar a ironia ou a ira, transmite visivelmente uma informação. (Jakobson, 1963, p. 32)
Green (1961) propõe "reintegrar o afeto, não como orquestração longínqua de um trabalho que se efetua ao nível do significante, mas como o próprio significante". Diria que há propostas parecidas com Lacan (1966), quando ele pergunta com ironia "Que fazem vocês (psicanalistas) do pré-verbal, do gesto e da mímica, do tom, do ar da canção, do humor e do contato afetivo?" (Lacan, 1966). Apropriando-me da colaboração de Schneider, trago uma abordagem bastante instigante postulada por Rousseau citada pela autora:
O ponto de partida é a recusa de uma gênese intelectualista, tanto quanto empirista, da linguagem, sendo que as primeiras palavras não teriam por função designar o mundo sob seu aspecto objetivo, tarefa remitida à inteligência prática que se exerce por gestos. É a paixão que viria romper esta troca rudimentar permitindo a satisfação de necessidades naturais; a linguagem se liberaria então, de saída, como transgressão em relação à esfera da natureza pura. Neste texto, ele questiona de onde pode, então, vir esta origem. (1761, p. 40)
E responde: "Das necessidades morais, das paixões. Todas as paixões aproximam os homens que são forçados pela necessidade de viver a se isolarem. Não é nem a fome, nem a sede, mas o amor, o ódio, a pena, a cólera que conseguiram arrancar as primeiras vozes." O que é original na proposta de Rousseau (1761) é a solidariedade que ele mostra existir entra essa troca passional e o instrumento verbal. Dentro de sua proposta, é difícil definir o que reaparece somente na linguagem e o que reaparece no afeto, pois como afirma "A linguagem tem seu nascimento na vontade do ser afetado em afetar o outro". Neste momento, acredito ser importante retomar o que Freud nos traz:
Na psicanálise se faz o uso mais completo desses dois teoremas (que chamou de pilares básicos da técnica psicanalítica) – que, quando ideias intencionais conscientes são abandonadas, as ideias intencionais ocultas assumem o controle da corrente de ideias e que as associações superficiais são apenas substitutas por deslocamento das associações mais profundas e suprimidas. … sinto-me justificado em inferir que aquelas que parecem ser as coisas mais inocentes e arbitrárias que me contam, acham- se, de fato, relacionadas à sua enfermidade. Existe outra ideia intencional de que o paciente não desconfia – uma ideia relacionada comigo. (Freud, 1900/1972, p. 567)
Outro estudioso do tema, nosso colega Isaías Melsohn (2001), refere-se aos conceitos de Freud a respeito de representação, lembrando que ter consciência de um objeto, significa inscrevê-lo num circuito que é o da linguagem, e nos diz que essa consciência ocorre porque o nome estabelece associações com uma unidade sensorial, resultado da associação das sensações visuais, auditivas, gustativas, olfativas e tácteis que provêm do objeto, às quais se associam cinestesias. Podemos observar que diante dessa concepção, a percepção do objeto é independente do seu nome; teríamos, portanto, a apreensão direta da realidade inominável – a representação de coisa.
Temos conhecimento da teoria segundo a qual o conteúdo manifesto do sonho é o substituto deformado para os pensamentos inconscientes, sendo essa deformação obra das forças defensivas do ego. Utilizo, também as idéias de Freud (1910/1972b, p. 34), com as quais concordo, de que "a gênese dos sintomas histéricos é a prova da interação das mesmas forças mentais que existem tanto na formação dos sonhos, como na formação do sintoma."
O que pretendo demonstrar com a pesquisa acima é que a linguagem é responsável pela transmissão do processo associativo e que podemos tomar conhecimento dela através da comunicação não verbal, pré-verbal e verbal. Proponho que juntamente com o conceito de experiência emocional, essas teorias tornam-se valiosas para a apreensão dos fenômenos mentais presentes em sala de análise. Estar "catexizada" para esses conceitos e teorias tem me auxiliado a perceber fenômenos mentais enriquecedores para o acesso ao mundo mental do paciente.
Na sala de análise
Paciente 1: Ana
Essa sessão aconteceu um dia antes do período em que me ausentaria por três semanas, em razão das férias. A paciente está no horário, é a terceira sessão da semana, deita-se, e diz logo em seguida:
− Estou lendo vários livros, vários autores muito interessantes.
O tom da fala é de satisfação. Parece bastante animada.
Digo em tom afirmativo:
− Terá boas companhias nas nossas férias.
Comentários
O universo de possibilidades de temas para se iniciar uma conversa é infinito. Escutando Ana, percebo o seu jeito, o tom, a fala, o clima e também a circunstância em que se dá o encontro. Tudo isso está presente na sala de análise. Sua comunicação parte do que chamamos pré-moção e emoção que está vivendo naquele momento e diretamente ligada ao que ela se autoriza a me comunicar. Quando digo isso, penso nas forças repressoras presentes no psiquismo e, também, que o que é externalizado é autorizado pelo ego. Parto da ideia de que o que está inconsciente é externalizado com todas as suas deformações por meio da autorização do Ego. Escuto, então, naquele momento, Ana me comunicando sua necessidade de mostrar-me que não lhe farei falta, que já tem bons substitutos, mas a necessidade de trazer isso a mim daquela forma me faz pensar no ditado: "Quem desdenha, quer comprar". Penso que Ana está ferida na sua defesa narcísica, ao sentir que minhas férias ocupam espaço dentro de si.
A forma com que se protege dessa dor é o desprezo. Não farei falta! A questão é, como Ana pode saber algo antes que aconteça? Essa situação nos informa que estamos em áreas sensíveis, redutos narcísicos e experiências traumáticas que Ana necessita negar. Isso tudo me aproxima do seu mundo psíquico e de sua história que passa como um filme em minha mente.
As falas seguintes de Ana me possibilitaram verificar que pude, com minha comunicação, expandir nosso campo de investigação.
Paciente 2: Carlos
Esta é a primeira sessão da semana. Há sessões às segundas, terças, quintas e sextas-feiras. Ele está no horário. Cumprimenta-me quando vou chamá-lo na sala de espera. Entra e senta. Quando passou por mim, tive a impressão, pela expressão do seu rosto, de que parecia animado e digo isso a ele. Depois de algum tempo em que ele silenciou, por mais ou menos dez minutos, ele me responde que não, que não estava animado e, sim, muito desanimado.
Chama-me a atenção o seu jeito de se comunicar, a necessidade de responder apenas dez minutos depois, parecia haver uma cisão entre o que está falando e o que estava demonstrando. Apresento-lhe minha percepção. Ele diz que era para eu não levar em consideração o que noto no seu rosto e na sua expressão corporal, mas naquilo que ele fala, porque ele não demonstra o que sente. Acrescenta que todo mundo fala isso para ele, principalmente a mãe, que diz que ele não expressa sua emoção. Observo que ele, realmente se esforça para manter o mesmo semblante. Há momentos em que parece sorrir, porém um sorriso inexpressivo, quase como um tique. Parece-me algo assexuado.
Quando escuto Carlos me falando sobre sua "luta" para não demonstrar a emoção, ouço justamente a informação sobre sua emoção, ou seja, levanto a hipótese de que é a experiência emocional que está vivendo naquele momento a responsável por sua necessidade de "se esconder" na expressão corporal tão ensaiada. Nesse momento, pressinto o perigo que eu significo, o medo que desperto. Sinto o quanto está projetado na minha figura alguém a quem ele não pode se deixar conhecer. Acredito que tenha motivos para evitar se expor, e levanto a hipótese de que estou diante de alguém que teme sua própria violência. Mas escuto também a necessidade dele me confidenciar seu "segredo", e isso me traz o conflito que ele está vivendo nesse encontro.
− Será justamente esse conflito, entre se esconder e se mostrar, o responsável por você vir até mim, mas não se permitir deitar no divã?
− Não gosto nem de pensar em ficar aqui, sem estar olhando para você, sem saber o que você pode estar pensando de mim.
− Nesse momento, sabe o que estou pensando de você?
− Imagino apenas e não gostaria de imaginar deitado no divã.
Comentários
O que estou trazendo com essa comunicação refere-se à importância que estou dando a esse momento do encontro e à associação que se segue. Minha proposta estaria relacionada a essa experiência. Freud nos comunica:
o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental. Para ele não existe nada insignificante, arbitrário ou casual nas manifestações psíquicas. Antevê um motivo suficiente em toda parte onde habitualmente ninguém pensa nisso; está disposto a aceitar causas múltiplas para o mesmo efeito, enquanto nossa necessidade causal, que supomos inata, se satisfaz plenamente com uma única causa psíquica. (1910/1972, p. 34)
Não estaria Freud também nos chamando a atenção sobre o quanto, por nossa necessidade causal, estamos em terrenos férteis para que esses fenômenos passem despercebidos?
Paciente 3: Maria
Está no horário, é a segunda sessão da semana. Há sessões às segundas, quartas e quintas-feiras. Deita-se no divã e diz:
− Marta, estou me sentindo muito, muito mal com o remédio que estou tomando (remédio que sua médica ginecologista lhe indicou), mas faz apenas cinco dias e eu vejo que com isso estou podendo conhecer meu organismo. Li, na bula, que no começo é assim mesmo, mas depois passa. Cinco dias é pouco, né?
Escuto a paciente acreditando que eu seria alguém em quem ela poderia confiar sua decisão de aguardar, assim como acredita que dessa forma poderia suportar o mal-estar que está sentindo. Transforma-me em um ser especial, com conhecimentos que a livrem do desconforto de pensar sobre sua decisão de aguardar. Digo-lhe:
− Como você sabe que cinco dias é pouco? O que a leva a imaginar que eu sei avaliar se cinco dias é pouco?
Fica meio atrapalhada com minha observação, e diz:
− Sei lá, achei que era pouco.
− E de onde tirou essa teoria?
− Sabe, vou te dizer. Eu não quis telefonar para a médica. Não queria incomodá- la – responde ela.
Insisto:
− Vejo que você se transformou em médica, transformou-me em médica e transformou a médica em paciente, porque, agora, é você quem cuida dela.
Comentários
O desenvolvimento dessa conversa possibilitou à paciente entrar em contato com experiências bastante primitivas, o quanto transforma o outro dentro de si, para não experimentar a dor de sua própria ignorância, do não saber. Em determinado momento, ela diz:
− Marta, a quantos perigos a gente se expõe sem se dar conta.
Com os supervisionandos
Adoto a postura de comunicar aos supervisionandos quais as teorias, método e técnica que adoto ao fazer minhas observações. Com relação ao que estamos discutindo neste trabalho, comunico que o momento do encontro entre paciente e analista é, em minha opinião, impactante, o que chamo, parafraseando Bion, de "tempestade emocional", abordando o que acima discuti.
Essa abordagem torna possível a observação do supervisionando:
− Bem, se é assim, nem é preciso mais continuar a falar do restante da sessão, pois já está tudo dito no início.
Informo que não é isso que estou transmitindo, pois acredito que a mente é um universo em expansão, mas observo que essa proposta traz a oportunidade de aprofundamentos em nossa investigação.
Paciente 4: José Fragmento de sessão autorizado pela supervisionanda
A colega começa me contando algumas coisas sobre a vida do paciente e ideias sobre a sessão e, então, pergunto a ela como foi o início desse encontro. O paciente estava no horário? O que percebeu desse início? Quantas vezes por semana atende o paciente? É a primeira sessão da semana? Compareceu à sessão anterior? Ela pensa um pouco e, então, me responde:
− O paciente está no horário. É a sessão da quarta-feira.
O paciente diz:
− Como foi seu final de semana?
E responde de imediato:
− O meu foi tudo bem!
Fala, em seguida, em tom de surpresa:
− Nossa! Eu nem espero você responder.
A supervisionanda continua contando a sessão e noto que não mais mencionou a comunicação acima. Interrompo sua fala e pergunto-lhe o que escutou com a comunicação do paciente. Ela se esforça, mas diz que não percebeu nada significativo. Digo-lhe, então, que, na minha opinião, o paciente traz algo importante: a percepção de que ela está presente no encontro. Ela rapidamente me responde:
− É verdade, ele falou muito surpreso, que nem tinha esperado a minha resposta, isso realmente não tinha ocorrido antes, mas passou completamente despercebido.
Converso sobre a condição de o paciente perceber a analista, observar que nem deixou que ela lhe respondesse, como uma saída de um reduto narcísico, ainda muito frágil, pois estamos na quarta-feira e ele pergunta sobre o fim de semana, mas traz um indicativo de algo de valor, uma pequena possibilidade de distinguir entre o eu e o outro: "Nossa! Eu nem espero você responder." Reitero que é importante ficar atenta a esse fato, mesmo que não façamos nenhuma observação no momento a respeito, mas que poderá nos auxiliar na possibilidade de "emergir" um fato selecionado,6 ou nos ser útil em uma interpretação transferencial.
A colega se entusiasma com a observação que faço e diz:
− Marta, o restante da sessão tem tudo a ver com o que você esta abordando, mas, realmente, eu não tinha percebido!
A comunicação não verbal é muito difícil de interpretar, de transformar ou traduzir num discurso articulado. Isso vale tanto para o analista quanto para o analisando. Plausivelmente o analisando espera ter que falar uma linguagem articulada com o analista e não tem palavras para fazê-lo. Isto acontece numa variedade de maneiras diversas – aqui podemos discuti-lo novamente não somente a respeito deste paciente em particular, mas também para colher uma certa semelhança entre este gênero de comunicação e o paciente que responde com rios de lágrimas. As lágrimas como os sorrisos, não têm significado. Assim, o analisando está às voltas com o problema de descobrir um método para comunicar aquilo que quer dizer (Bion, 1997).
Com relação a essa situação, compartilho uma experiência muito enriquecedora para mim, pois não consigo me furtar do prazer de dividir, com o leitor, minhas associações a respeito do tema relacionado às várias formas de comunicação. Depois de permanecermos, eu e o paciente, em silêncio por trinta e cinco minutos, observo que ele se mexe no divã, dando-me a impressão de que estaria desconfortável. Depois de mais alguns minutos me vem à mente a seguinte comunicação, e digo a ele:
− Nesse tempo em que estive sem falar com você, muitos pensamentos me vieram à mente. A forma com que eu os mantive, apenas para mim, foi me dizendo que seria interessante aguardar. Aguardar o que pudesse surgir de você. Senti que esses pensamentos foram responsáveis por me manter calada e fiquei curiosa a seu respeito. Pensei: Que pensamentos o mantém calado aqui comigo?
De forma um tanto relutante, de alguém que se esforça para uma comunicação, ele me confidencia:
− De que adianta falar com ela, ela não vai me compreender.
− Como você sabe?
− É que eu já experimentei falar, na outra análise, e me dei muito mal.
− Pelo jeito, virei farinha do mesmo saco e nem sei direito qual farinha é; sei, apenas, que de coisa boa é que não é.
Ele sorri e responde:
− É que dá medo.
A linguagem articulada, que pode ser compreendida por outro e que o paciente pode entender, não está ao alcance do próprio paciente. Assim, teme que não haja nenhuma possibilidade de receber a ajuda que ele quer por parte do analista. Esta é uma situação realmente muito comum. Acho sempre assombroso constatar quão poucos são os pacientes que acreditam que se possa receber algum alívio. O mesmo vale para os analistas: têm a sensação de não ter nenhuma prova de que o tipo de conversação que tem lugar na análise possa satisfazer alguém ou alguma coisa. É necessário muito tempo para que se esclareça que de fato o relacionamento psicanalítico está produzindo uma experiência de nutrição para ambas as partes (Bion, 1997).
O desenvolvimento de um ego analítico e função analítica e o consequente desenvolvimento da "escuta analítica" é, sem dúvida, uma responsabilidade permanente para todos nós. A noção de que a "mente é um universo em expansão" (Bion) não nos autoriza a diminuir a inquietação. Investigar é nosso legado. O prazer em investigar é nossa "sorte". Finalizo, trazendo a pergunta de um colega que estava assistindo a um debate sobre o tema "Associação Livre de Ideias: Via Régia para o Inconsciente", no qual eu era uma das debatedoras. Após ouvir os palestrantes, a colega perguntou à mesa:
− Mesmo estando em silêncio o paciente e o analista, está existindo na sala de análise a associação livre de ideias e o analista, nesse momento, estaria utilizando este método?
Minha resposta diz respeito às questões que aqui tento descrever:
− Sim. Entendo que o silêncio, em sala de análise, é uma forma específica de comunicação, resultado da emoção que está ocorrendo naquele momento, entre o analista e o paciente. À medida que tenho como conceitos as teorias psicanalíticas a respeito da transferência, inconsciente, associação livre de ideias etc., a comunicação que está se dando ali de forma não-verbal ou pré-verbal, escuto como sendo manifestação das funções do ego com seus consequentes mecanismos de defesa atuando, e que, nessa forma de comunicação, está presente o conceito de associação livre de ideias, enquanto método de trabalho.
Se escuto dentro desse referencial o que se passa comigo e o que está presente na sala de análise, desde o momento em que o paciente entra no meu campo de visão, como tentei demonstrar, não passará despercebido e poderá ser utilizado para compor uma interpretação psicanalítica (Freud, 1900/1972 e Klein, 1947/1982) ou uma observação psicanalítica (Bion, 1962).